sexta-feira, 29 de junho de 2012

XXI – Programa Família (parte I)



Léo e Ariel estavam a mais de meia hora conversando no quarto e as torradas com manteiga de amendoim que preparei já haviam esfriado. Ariel havia feito o desjejum mais cedo na casa da mãe, mesmo assim preparei-lhe um lanche. Leandra, por outro lado, deveria estar faminta, pois a ansiedade havia lhe tirado o apetite desde a noite anterior. Decidi subir para chamá-las e quem sabe participar da reunião. A porta estava entreaberta, dei uma batida leve e entrei. As duas estavam se abraçando e o sorriso da baixinha quase atravessava seu rosto de orelha a orelha.
– Meninas... Vocês não vão descer para comer não?



– Ah, papai! – Ariel se agarrou a minha cintura. – Tô tão contente!
– Eu também, amor... Eu também.
– A Léo vai passar o fim de semana com a gente né? Diz que vai, diz que vai!
– Ué! Só depende dela... – desviei o olhar para minha namorada.
É um prazer indescritível poder me referir a Leandra assim. Minha namorada.



Ariel voltou rosto novamente para Léo, esperando uma resposta.
– Se você quer que eu fique, eu fico...
– Ôba! Ôba! Ôba! – festejou.
– Certo, baixinha... Agora faça o favor de descer e tomar sua colação, porque a esta altura seu cereal já virou mingau!



Ariel desceu e foi a vez de Léo me apertar contra seu corpo.
– Parece que agora é oficial... – brincou.
– Ainda preciso pedir a sua mão a quem de direito.
Léo vacilou e eu me arrependi. Não era minha intenção apressar nenhuma situação.
– Ei... Eu tava brincando. Quer dizer, é óbvio que quero me casar com você, mas sei que não dá pra ser agora.



Ela fingiu naturalidade.
– É claro... Vamos descer? Estou com desejo de comer as suas torradas... Senti o cheiro aqui de cima...
– Já estão frias, mas...
– Tenho certeza que não estão menos saborosas por isso.



Foi um sábado de programa família. Passeio no parque, almoço, cinema, shopping e uma bela pizza à noite pra acompanhar algumas partidas de majong. Ariel estava super empolgada, não parava de tagarelar um só minuto, mal dava para acompanhar tudo que dizia. Léo sorria o tempo todo, por mais acostumada que estivesse a esses excessos da minha filha. Eu posso afirmar sem medo de errar ou de me arrepender que nunca havia sido mais feliz.



O telefone tocou e Ariel saiu correndo para atender. Como estava demorando, eu aproveitei para trapacear.
– Seu cara de pau!!! – exclamou Léo. – Eu estou aqui!
– Shhh... Mas ela não! Adoro a cara dela nervosinha quando descobre que foi passada pra trás.



A baixinha então voltou com novidades.
– Era a tia Mel chamando pra almoçar amanhã.
– Você avisou que estamos com visita?
– Claro, pai! – revirou os olhos. – Mas ela disse que o convite é extensivo e que seria um prazer conhecer a Léo.
De repente ela pareceu notar algo diferente no tabuleiro que havia deixado.
– Ei! Pode devolver minhas peças, espertalhão!



Melissa ouvira falar de Léo, é claro. Fosse através de mim, de Ariel ou talvez do próprio Rey ao lhe confidenciar alguma coisa a meu respeito. No entanto, as duas não haviam sido apresentadas, apesar de Léo já ter visto Reinaldo e Trevor, algumas vezes ao visitar Ariel na minha casa.
– Então... Você quer ir? Se não, posso marcar com eles outro dia...
– Sem problemas por mim, Yuri. Quero conhecer melhor os seus amigos, além do mais, ela foi tão simpática...



Melissa de fato, sempre foi uma pessoa afável e eu não temia nenhum constrangimento que pudesse vir dela ou de Rey. Porém, não podia dizer o mesmo quanto a Trevor. E foi justamente ele quem nos abriu a porta no dia seguinte.
– E aí, gayzão! Ooooops! – fingiu reprimir-se quando pôs os olhos em Léo. – Foi mals!
Eu gostaria que ele se controlasse mesmo era por causa de Ariel, mas já tinha desistido disso.
– Gay é você, que nunca tá com uma namorada, Truta! – defendeu-me a baixinha, fazendo careta.



– Ei, abusadinha! Isso é porque eu tenho muitas e não caberiam todas na sala minúscula do seu tio Rey! Além do mais elas iam ficar cacarejando sem parar e ninguém ia querer isso!
– É uma forma muito gentil de se referir a elas... – observou Léo, com ironia. Eu ri ao imaginar o esforço que Trevor estava fazendo para não proferir uma grosseria. Seu rosto chegou a ficar vermelho em contrariedade.
– Bem... Porque não entram? Não sei se esse encontro será divertido, mas pelo menos temos álcool... – provocou.




Rey e Deco que estavam na sala, logo nos cumprimentaram. Léo educadamente perguntou por Melissa.
– Ah! Ela está na cozinha... Mel gosta de cuidar de tudo bem de perto. Quase beira o exagero, eu diria... Mas nego o que disse se você contar pra ela! – brincou Reinaldo.
– Acha que eu atrapalho se for até lá?
– Não, querida, de jeito algum!




Reinaldo pediu a Ariel que levasse Léo até a cozinha e a apresentasse a Melissa. Ela, que adorava ser tratada como adulta, prontamente atendeu ao pedido. Deco tentou segui-las, mas foi impedido pelo pai.
– Você fica aqui, rapaz! Deixe a menina respirar!
O garoto o encarou vacilante e Rey tentou explicar.
– Filhão... Eu sei que você adora a Ariel e a admira. Ela é uma menina linda e eu te dou toda a razão. Mas a gente não pode marcar em cima, sabe? Que nem cabeça de área? Não é pra esnobar, não, é que as garotas gostam de ter espaço, entende? E a gente precisa respeitar...



Trevor fez uma careta, e aproveitando que não havia nenhuma representante do outro sexo no recinto, resolveu rebelar-se.
– Meu Deus, eu estou rodeado de bonecas! – virou-se para André, antes de continuar. – Não é nada disso, guri! Presta atenção... Mulher gosta de fazer doce, e doce a gente gosta é de comer!
– Cala a boca, Trevor! – gritamos eu e Reinaldo ao mesmo tempo.




sexta-feira, 22 de junho de 2012

XX – A Carta (parte II)


Com a partida de Pedro, Léo voltou a morar no apartamento que antes dividiam. Desejava, mais do que nunca, provar ao mundo que era autossuficiente. Estava estudando para um concurso da prefeitura e começou um mestrado em Ciências Sociais. Quanto a mim, jamais pus os pés naquele lugar. Pode parecer idiotice, mas me sentiria um intruso. No máximo a pegava ou a deixava na porta de seu prédio, e voltava para minha casa.


Algumas vezes ela vinha e ficava, e eu adorava essas noites. Seu cheiro perfumava minha cama, embalava meu sono e só me trazia sonhos bons. Numa destas manhãs seguintes, em que eu acordava ainda inebriado, Léo havia levantado um pouco mais cedo. Ouvi o barulho que vinha do chuveiro e olhei para o lado onde ela dormira. Ela havia deixado a roupa que usaria no dia caprichosamente desdobrada ao lado de sua bolsa. Foi quando vi o envelope.


Eu tinha certeza que era a tal da carta de Pedro. Fui tomado por uma curiosidade sufocante e quando me dei conta o envelope estava em minhas mãos. Entretanto, me contive e não o abri. Seria uma atitude repreensível, e provavelmente imperdoável, mesmo que ela nunca viesse saber que eu havia lido. De súbito, devolvi o objeto ao seu lugar. 


Por uma dessas desastrosas coincidências, Léo estava saindo do banheiro no mesmo instante e foi inevitável que interpretasse a cena da pior maneira.
– O que está fazendo?
– Nada, eu... só fiquei curioso, naturalmente...
– Não acredito que tenha feito isso, Yuri! – exclamou num tom ainda mais enfurecido. – Você leu?!


– Não! – apressei-me em esclarecer. – Eu nem abri! Me desculpe!
– Porque pegou então? – perguntou, agora desapontada.
– Eu já disse... curiosidade... Já estava curioso desde que soube da existência dessa carta, e fiquei mais ainda ao perceber que você a carrega por aí com você... Afinal, foi você quem disse que não queria viver com fantasmas. De minha parte, eu nunca teria essa pretensão. 


Léo ponderou durante alguns segundos e sentou-se ao meu lado na cama.
– Você quer ler?
– É muito difícil responder essa pergunta. Eu te amo, e tudo relacionado a você me interessa, Léo. Mas nem sempre significa que faz parte do meu querer. Não sei se me fiz entender... Eu acho que não quero ler... Ao mesmo tempo existe algo que me impele a saber o que diz aí.


Após um momento de silêncio, eu me encaminhei para o banheiro, a fim não só de fazer minha higiene matinal, como também de dar a um Léo alguma privacidade. Refletindo embaixo do chuveiro conclui afinal que por mais despretensiosa que fosse a minha intenção, não seria nada honesto pôr os olhos nas palavras de Pedro para Léo. Seria ainda mais invasivo do que frequentar seu antigo endereço e decidi dar por encerrado aquele assunto.


Ela não estava mais no quarto quando saí. Havia esticado os lençóis e a colcha com esmero. Deixou para mim um post-it com um coração desenhado em batom em cima de seu travesseiro.


Estava terminando meu desjejum quando a campainha tocou. Joguei os pratos na pia e fui atender ainda achando que podia ser Léo, de volta por ter esquecido alguma coisa. Foi uma surpresa dar de cara com Trevor àquela hora da manhã.
– E aí seu depravado?! Quer dizer que pra saber de você, só sendo leitor de revista de fofoca, é? Eu sabia que pra abandonar os amigos mais uma vez só podia ser pra comer mulher! Mas mulher de famoso é foda, compadre!


Eu não sei se um dia me acostumaria com o jeito dele.
– Trevor, podemos marcar outra hora? Eu estou de saída...
– Eu sei, porra! Vim justamente te dar uma carona pro trabalho!
– Mas não tem nenhum problema com meu carro...
– Ótimo! Então você que vai me dar uma carona até a UFEB pra eu azarar as gostosinhas do centro acadêmico, que tal?


– Trev... Se está aqui por causa da Nina, eu sei o quanto fui escroto, mesmo assim, não acho que seja da sua conta, apesar de sermos amigos e de ela ser sua prima... Se nunca mais quiser olhar na minha cara eu entendo, mas não vou discutir esse assunto com você.
– Sabe, galã... Quando eu descobri que você deixou a Nina esperando no aeroporto eu quis muito, muito mesmo te dar um sacode. Eu fiquei puto de verdade, e não vim aqui exatamente pra evitar uma cena desagradável dessas. Eu devo ser o maior galinha que você já conheceu, mesmo assim eu NUNCA – frisou – dei um perdido destes numa mina. 


– Mas... – continuou antes que eu pudesse intervir – eu me dei conta que fui o maior estúpido da história, quando fiz questão de apresentar vocês dois... Não imaginei um envolvimento maior porque achava que conhecia tanto você, quanto a Nina. Superestimei a minha capacidade de avaliação. Então... Vamos dar um fim nesse assunto, eu já conversei com a Nina, e sei que ela está bem. Neste ponto, eu não julguei errado, ela é uma mulher incrível, com uma excelente capacidade de se reciclar.


– Eu acho até que não devia estar te falando isso, devia deixar você continuar se achando um miserável por muito, muito mais tempo, porque nisso eu também não me enganei, sei que é assim que se sente, e preciso ser honesto e dizer que você merece. O problema é que o mundo não é perfeito e por isso eu gosto de você, seu cuzão! Azar o seu, que vai ser obrigado a me aturar...


Sem saída, dei a Trevor uma carona até a UFEB e, no caminho, contei a minha versão da história que ele soube através da mídia.
– Eu só espero que você não sucumba quando ela te der o pé na bunda e voltar pro zagueiro foderozão... Eu já tive saco prum drama parecido de outra vez, mas acho que nem o Rey aguenta uma nova deprê...
– Obrigada, Trevor... Vou tentar me lembrar disso... – retruquei com pouca paciência.


À noite, após o trabalho no Pôr do Sol, Léo e eu nos encontramos em frente à horta, para irmos embora.
– Como foi seu dia? – perguntei ao mesmo tempo em que a abraçava.
– Foi tranquilo... Escuta, me desculpe pelo estouro hoje de manhã... – eu tentei interrompê-la para dizer que se alguém devia desculpas seria eu, e ela não deixou. – Você não vai voltar a ver essa carta. Mas, se sentir necessidade de saber o que ela diz, fique a vontade para me perguntar.


– Não... A única coisa que preciso saber é para onde você quer que eu te leve agora.
Leandra sorriu.
– Eu estive pensando... Ariel estará com você sábado e domingo, não é? – eu apenas afirmei com um meneio. – Então... Se você estiver de acordo, gostaria de conversar com ela. Acho que passou da hora de contar pra baixinha que somos um casal, e que... bem... talvez eu vire... madrasta – vacilou ao pronunciar a palavra – dela... algum dia.
– Nada deixaria o meu fim de semana mais perfeito!



sexta-feira, 15 de junho de 2012

XX – A Carta (parte I)


Eu gaguejei três vezes na tentativa de iniciar uma explicação, e enquanto a encarava percebi alguns arranhões em seu rosto.
– O que é isso? Onde você se machucou?
– Eu fiz a pergunta primeiro! – empertigou-se.
– E eu sou seu pai!


A minha resposta era definitiva e sabendo disso, Ariel murchou antes de responder.
– Eu briguei no colégio...
– E porque você brigou? Com quem? Você não é disso, Ariel, o que houve?!
– A Catarina Marinho que começou! A gente tava no recreio, ela veio com o grupinho dela, parou na minha frente e disse “eu bem sabia que aquela sua amiga Léo é uma periguete!”. Daí ela e as amigas começaram a cantar “periguete, periguete, amiga de periguete!”.


– Isso não era motivo para você entrar numa briga...
– Ô pai! Era da Léo que elas tavam falando! E de você! – rebelou-se atirando o jornal no chão. – Te chamaram de cafajeste e a Léo de vagaranha... Quando eu voei em cima dela, a guria esfregou o jornal na minha cara e a unha dela me arranhou. Foi aí que vi as fotos. Mas... eu não entendo direito o que está escrito... não pode ser isso! É verdade, papai?
Como explicar aquela situação para uma criança de oito anos de idade, por mais madura que ela pudesse parecer?


Eu me ajoelhei para ficar da altura de Ariel.
– Meu amor, eu não sei o que diz essa matéria... Não li, porque não acho digna de alguma consideração.
– Então você vai me contar o que está acontecendo? Ou é uma daquelas histórias que crianças não devem saber? – perguntou resignada.
– Pra ser sincero, acredito que você não vá entender muito do que eu possa te explicar, baixinha... Você mesma já me disse que nós, adultos, temos a mania de complicar as coisas simples, não é? Mas se quiser realmente saber, eu posso te dar a minha versão...


Ela levantou a sobrancelha, indicando que desejava ouvir. Então eu lhe contei a história tentando não me ater a pormenores que pudessem comprometer a sua compreensão. Ela escutou com atenção e um tanto surpresa. Contudo, em nenhum momento me questionou, fosse por conduta minha ou da Léo, ou mesmo de Pedro.
– É... Eu tenho razão! Vocês têm mesmo o dom de complicar tudo! – Ariel concluiu e suspirou. – Estão namorando agora, você e a Léo?


– Não, baixinha... A Léo precisa de um tempo pra pensar, entende? Pode ser que ela apareça por aqui, vez ou outra, e nesses momentos ficamos bem próximos... Mesmo assim não é um namoro oficial. Não ainda... Vamos, eu vou te levar pra casa antes que sua mãe fique louca... – terminei de falar e o telefone tocou. Eu tinha certeza absoluta que era Sônia. – Viu...
– Pai! – ela fungou ao me chamar antes que eu atendesse. – Existe outro motivo pr’eu ter vindo direto pra cá... Pode assinar a advertência que tomei? Achei que mamãe ficaria muito zangada, se eu pedisse pra ela...


Pedro não demorou a partir para a Itália, e Léo me contou que não chegou a estar com ele. Mencionou apenas que ele havia deixado uma carta, escrita de próprio punho, mas entregue através de Dora.
– Você já leu?
– Já. – respondeu simplesmente.
Eu não conseguia decifrar o que ela sentia ao me falar, no entanto tinha certeza absoluta que Léo buscava me poupar de suas mágoas, o que me despertou uma curiosidade aflita sobre o conteúdo da tal carta.


– Quer me contar?
– Não. – disse categórica, porém sem me enfrentar. – Pedro fez a escolha dele. Espero que fique bem, e desejo que seja feliz, muito mesmo... Mas esses dias eu estive refletindo sobre tudo o que aconteceu, e cheguei à conclusão que não quero viver com o fantasma dele entre a gente, Yuri. Porque não deu certo viver com o seu entre mim e ele...


Eu admirava sua proposição, mas não acreditava ser possível colocá-la em prática. A lembrança de Pedro nunca iria a abandonar, pois estava em cada detalhe da sua vida. Mesmo assim, eu a puxei num abraço pelas costas, e lhe dei meu apoio.
– Não toco mais nesse assunto, Léo. – prometi-lhe ao pé do ouvido, e beijei-lhe o pescoço em seguida. 
Léo virou-se um pouco mais animada e me beijou. Eu teria que me conformar em nunca saber.


– Bom, se a ideia é mudar de assunto... A recreadora das dezenove horas vai se mudar para outra cidade e terá que nos deixar. Vamos precisar de alguém pra assumir a turma das crianças nesse horário... Como está a sua agenda?
– No Pôr do Sol? – reparei no brilho especial que seus olhos ganharam. – Você está falando sério? 
– Arram...
– Ah, Yuri! – exclamou me abraçando e me enchendo de beijinhos estalados. – Eu mal posso esperar pra começar!


Duas semanas mais tarde, Léo entrava no Pôr do Sol mais uma vez em minha companhia, mas a primeira como voluntária. Fomos recebidos por Joelma, que aguardava ansiosa a nossa chegada. Joelma foi uma das crianças a quem Léo dedicou atenção no dia em que a trouxe para conhecer a instituição, naquele ano em que foi minha aluna. Em caráter emergencial, ela acabou ocupando o lugar de uma recreadora que havia faltado sem aviso prévio.


Não conseguindo conter sua emoção, Joelma pulou no pescoço de Léo.
– Você... não mudou nada! Só está mais bonita!
– Eu?! – Leandra perguntou confusa. Não havia reconhecido a garota, que devia ter estar agora, beirando os dezesseis anos de idade.
Era de se esperar. Além do tempo, que transformara a menina numa bela adolescente, Joelma estava maquiada, bem vestida, e com os cabelos extraordinariamente bem cuidados. Em nada assemelhava-se a imagem das crianças que frenquentam a instituição.


– Essa é a Joelma, Léo... – adiantei-me em esclarecer. – Lembra-se dela?
– É Jô, Yuri! – a garota me corrigiu enfezada. – Jô Azevedo! Meu nome artístico...
– Sempre será Joelma pra mim... – impliquei.
– Oh! Meu Deus! É claro que eu lembro, mas... Você está tão... – Léo tentava controlar o choque que o retrato da moça lhe causou.
– Diferente?! – Joelma completou com humor. – É, eu sei... Eu espichei de uma hora pra outra, e num raro passeio uma vez pelo shopping, um olheiro me abordou... Me deu um cartão que meu irmão mais velho quase rasgou achando ser picaretagem, mas... não era!


– Você está linda! Muito linda mesmo, parabéns! E está feliz com essa escolha?
– Se estou feliz? Caramba! Se eu não estivesse, agora recebendo um elogio seu, não havia como não ficar! Você sempre foi o exemplo de beleza pra mim... Porque a sua beleza não é só a que a gente vê. Ela é um reflexo do que vai dentro de você... Um dia chego lá...
– Você já me deixou pra trás, guria... Acredite! Esse olheiro deu uma sorte incrível de te achar!


Joelma sorriu, agradecida.
– Bem, eu tenho que ir pra minha aula... Por contrato, agência vai bancar a faculdade pra mim, mas apenas se eu conseguir uma boa classificação no vestibular e mantiver minha média acima de oito em todas as matérias. Sou modelo, mas também quero ser arquiteta.
– Faz você muito bem! Boa aula, Jô!
– Obrigada, Léo... Estou contente que a gente vai se ver mais vezes agora... Té mais!


– Nossa! Eu estou perplexa! – exclamou Leandra assim que Joelma nos deixou.
– Sabe que em todos esses anos, ela nunca deixou de perguntar por você...
– Você comentou algumas vezes, mas eu... Eu não podia imaginar que a influenciei desta maneira! Eu apenas... penteei o cabelo da menina...
– Nunca temos a real noção do quanto somos capazes de fazer a diferença na vida do outro, não é?


Léo silenciou pensativa durante alguns instantes.
– Preparada pra conhecer sua turma? – Perguntei, interrompendo suas divagações.
– Eu nunca estou preparada... Sempre sou surpreendida de alguma forma, e acho que é isso que está constantemente me motivando...
Ela era tão formidável ou seriam meus olhos admiradores, ludibriados pelo amor que a cada dia eu sentia tornar-se mais vigoroso?




sexta-feira, 8 de junho de 2012

XIX – Efeitos (parte III)


Precisei levantar cedo no dia seguinte, pois tinha aulas a dar pela manhã. Deixei um recado de bom dia no criado mudo e parti para a UFEB, mas meu celular tocou antes mesmo da minha primeira turma.
– Você podia ter me chamado... 
– Não tive coragem... Você parecia muito confortável enrolada no edredom, dormiu bem? Tem um expresso engatado na cafeteira, é só apertar o botão. E leite na geladeira... e cereal... Se quiser fazer torradas fique a vontade, mas tente não pôr fogo na casa!



– Engraçadinho!
– Ei, Léo... Eu te amo.
– Também amo você, Yuri...
– Vejo você mais tarde?
– Sim, claro que vê...



Mas isso não aconteceu. Havia uma estranha aparentemente me esperando na sacada da entrada, quando voltei para casa aquele fim de tarde.
– Boa noite, professor Yuri... Podemos conversar?
– Desculpe, eu conheço você?
– Não, creio que não. Estudei na UFEB, mas você não chegou a me dar aulas... Me formei em jornalismo há mais ou menos dois anos.



Desconfiei quando ela mencionou a profissão, mesmo assim perguntei.
– E sobre o que você quer conversar comigo?
– Sabemos que Leandra Salvatore separou-se de Pedro Gregório após o jogador deformar o rosto do próprio pai... E bem... Eu estava na UFEB quando surgiram as fofocas sobre Léo e um certo professor de sociologia...
– Você mesma já disse... Foram fofocas. Não têm fundamento, então não há mais o que se falar sobre esse assunto... Com licença...



Desviei da criatura na intenção de entrar em casa. Porém, a mulher não desistiu.
– Vamos lá, Yuri... Sei que ela dormiu aí, e eu vi quando ela saiu, um pouco depois de você. Eu levo vantagem sobre os meus colegas de profissão, porque estudei na época da Léo e seu nome foi o primeiro que me veio à cabeça. Mas essa galera não é ingênua. Seu pai está fazendo a defesa de Pedro, o que eles não dariam para saber a sordidez por trás dessa história toda?



Retornei bufando na tentativa de me controlar para não mandá-la à merda.
– Mas... – a mulher prosseguiu com um toque de suspense, pensando estar me propondo uma oferta irrecusável – se você me conceder uma entrevista exclusiva, antes da mídia em peso aterrissar na sua porta, podemos montar uma versão em que você saia bem na fita, se é que você me entende. 
– Eu acho que você é que não entendeu, mas eu posso repetir... Não. Há. Nada. Para. Ser. Dito. – a pausa entre as palavras deixando clara a minha impaciência. – Boa tarde!



Corri ao telefone para avisar Léo. Seria mais prudente que ela deixasse de vir aqui por algum tempo. Sua voz estava estranha ao telefone, apática, muito diferente da animação de quando nos falamos pela manhã.
– Não importa... Não ligo para o que publiquem! Verdade ou mentira, não importa... Nada disso vai mudar nada! 
– Do que você está falando, Léo?
– Olha, está uma confusão aqui, eu precisei tomar um ansiolítico, estou com muito sono... Podemos nos encontrar amanhã? No Pôr do Sol?



O dia passou se arrastando. Tanto na UFEB quanto no Pôr do Sol. Quando finalmente terminei a minha última aula, desci correndo a escada do contêiner e, daquela altura, avistei Leandra sentada na varanda suspensa em frente à horta, me esperando.
– O Pedro vai embora... – falou antes mesmo de me encarar quando me aproximei. – Vai acertar aquele contrato com o tal time italiano. O seu pai está tentando uma licença especial com o juiz para conseguir que ele saia do país. Ele vai embora. Ele vai embora e nem mesmo falou comigo. Foi a Dora quem me deu a notícia... Sei que não mereço a sua consideração, mas...



Léo caiu no choro e eu não sabia o que dizer. Qualquer palavra de consolo que saísse de minha boca soaria falsa. Eu apenas sentei ao seu lado e a abracei.
– Porque ele está fazendo isso? Não estamos mais juntos, mas ainda somos irmãos, não somos? Se era mesmo seu desejo ir para lá, porque não na primeira oportunidade? Estaríamos no exterior quando o crápula do pai dele aparecesse e nada disso teria acontecido!
Não pude ignorar que “isso”, mal ou bem, incluía a mim também.



– Desculpa, Yuri! – ela pareceu perceber a amplitude do que dissera. – Eu não quis me referir a nós dois! Oh, meu Deus, não é isso! Eu não estou arrependida nem um pouco, por favor, não pense isso!
– Está tudo bem, Léo...
– Não, não está! Você não é um prêmio de consolação! Só que eu... Como vou explicar algo que nem eu mesma entendo?! Eu não consigo imaginar um mundo em que não exista você e o Pedro! Isso é horrível! Soa mesquinho, egoísta! Eu me sinto tão execrável! 



– Não é horrível, nem execrável... Só está... fora de padrão...
– É... O padrão considerado aceitável pelo meio social do qual eu faço parte... O que dá no mesmo! Essa frase só fica bonita no contexto da sua aula, Yuri. – Léo suspirou. – Eu não posso entender nem como você consegue ouvir as coisas que eu digo...
– Eu sempre escutei você, Léo. Porque seria diferente logo agora?
– E isso não te machuca ainda mais?



– Não. O que sinto por você só cresce e se intensifica. Creio que junto crescem as minhas forças para enfrentar as adversidades... Talvez seja isso, eu não sei, é só um palpite, Léo. Nunca havia experimentado um amor assim.
Léo enxugou as lágrimas e deitou a cabeça em meu ombro.
– Ah, Yuri! Você é tão incrível. Eu... Eu queria tanto me sentir merecedora desse seu amor...
– Você devia, Léo... Você devia...



Ficamos alguns dias sem nos ver, o que era compreensível, diante dos acontecimentos. Conseguíamos nos falar por telefone muitas vezes, e contra minha vontade, Léo me poupava dos problemas que ela e a família vinham enfrentando desde a prisão de Pedro. A informação que eu possuía era a dos jornais, que inevitavelmente acabaram por publicar uma matéria mal intencionada a respeito de um suposto relacionamento extraconjugal da indigna esposa do violento jogador com seu mal-intencionado ex-professor.



O primeiro telefonema que recebi depois disso foi o do meu pai.
– Eu realmente não sei como você pode ser tão ingênuo, Yuri! Você vive num mundo fantasioso! Não é possível! Custava me ouvir uma vez?! UMA! – gritou. – Agora está aí! Meu nome envolvido em mexericos num jornaleco de quinta categoria! Pelo amor de Deus, homem! Quando é que você vai parar de agir de forma tão leviana e encarar a realidade?! Você é um Tedesco! Comece a agir como tal!



Deixei que ele falasse, sem responder, como de costume. Era isso que ele desejava, era isso que ia aliviar um pouco da vergonha que ele sentia de mim, pois não havia outra forma de ajudá-lo. Mesmo que quisesse, nunca conseguiria ser o Tedesco que doutor Ernesto almejava que eu fosse.
– Bem faz o rapaz em aceitar minha sugestão de reassumir a carreira no exterior. Logo seu nome volta a tramitar a mídia pelo mérito esportivo lá fora e não por traições amorosas ou violência doméstica.



– Aliás, o marginal do pai dele, aquele sujeitinho nojento! Vai receber uma grana fácil só pra não amolar mais, mas merecia uma surra maior do que a que ganhou do filho... Você não devia ignorar alguns exemplos, Yuri! Olhe de onde o garoto saiu e aonde ele chegou! Já você... nasceu em berço de ouro e desperdiça talento sonhando com um mundo encantado de paz e igualdade! Acorda, homem! Você tem uma filha para sustentar! Vai deixar sua ex-mulher fazer o trabalho sozinha?!



Eu não estava passando nenhuma necessidade. Tampouco deixava de contribuir para o sustento de Ariel, embora Sônia de fato não precisasse do meu dinheiro, e eu acreditasse que minha pensão fosse toda destinada ao plano de previdência privado que ela fazia para a baixinha. Minha vida era confortável, porém estava longe de ser rico. E mais distante ainda de ser tão bem sucedido quanto meu pai.



Apesar de duras, as palavras do doutor Ernesto não me afetaram mais do que a reação de Ariel naquele mesmo dia em que veio da escola direto para minha casa, o que não era seu costume. Trazia nas mãos um jornal e no rosto um semblante de decepção.
– Pode me dizer o que você, a tia Léo e o tio Pedro estão fazendo aqui?